Aqui deixamos um artigo de opinião de Paulo Pedroso emitido na TSF em 23 de Setembro de 2019.
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Um olho nos mercados e outro no povo
Como tudo o que corre bem, não falta à solução de governo que tivemos
nos últimos quatro anos quem reivindique os seus méritos. E não vão faltar
definições contrastantes de que méritos são afinal esses.
O PS reivindica a descida do desemprego, o papel da prudência, do rigor
orçamental e a credibilidade internacional do nosso caminho alternativo à
teoria da austeridade expansionista, a subida do rendimento disponível das
famílias e que cumpriu o que prometeu, quer no seu programa original, quer nos
acordos com os partidos de esquerda.
O BE chama a si os termos em que se fez o
aumento do salário mínimo e a sua capacidade de desfazer acordos e concessões
que o governo tinha feito aos patrões na concertação social.
O PCP foca-se nos
aumentos extraordinários das pensões, na redução dos horários de trabalho da
função pública e na reposição de níveis salariais. E até o PAN vem dizer que se
juntou ao comboio da mudança desde muito cedo na legislatura. Todos têm uma
parte de razão. Mas nenhum mostra a chave para o sucesso do governo, que esteve
em que o conjunto das forças que influenciaram as soluções encontradas ao longo
da legislatura produziu um equilíbrio que não existiria de outra forma.
O programa económico do PS em 2015 era muito mais contido no que podia
ser feito em benefício das pessoas do que aquilo acabou por se materializar
desde primeiro Orçamento do Estado da legislatura, o que tão mal foi recebido
em Bruxelas, e em relação ao qual a direita cometeu o erro fatal de desdenhar.
Os progressos sociais aconteceram nas áreas onde havia agendas dos
parceiros que se impuseram pela interdependência gerada pela
"geringonça". Uma parte substancial dessa agenda veio do próprio PS
e, dentro do governo, da tensão entre os ministros de linha e o Ministério das
Finanças, indo além do seu próprio programa. Mas outra veio de fora. Mais, a
que veio de fora ajudou muito a criar espaço para a que vinha de dentro, e
aconteceram coisas que pareciam inimagináveis. A direita acha que foi só sorte
e boleia da conjuntura, mas foi uma sorte que deu muito trabalho e a deixou sem
discurso nem estratégia. São conhecidos e reivindicados por todos à esquerda os
sucessos, não os repito agora. Olhando em retrospetiva, conseguem vislumbrar-se
também alguns perdedores desse encontro de agendas.
Em primeiro lugar, os direitos coletivos dos trabalhadores, em que o
governo abdicou de iniciativa exceto em aspetos pontuais e entregou à
concertação social (que funciona em modo bloco central) a responsabilidade de,
por inércia, transformar uma boa parte das normas de exceção do tempo de crise
e do governo de direita em novo normal. Neste capítulo, o desejo de
estabilidade do PS, a falta de relevância sindical do BE e a prioridade dada
aos rendimentos dos trabalhadores sobre os seus direitos coletivos pelo PCP,
que manietou a CGTP, permitiram que a legislatura terminasse muito à direita do
que se poderia ter esperado.
Em segundo lugar, os serviços públicos em geral e a saúde em
particular. Apesar de, como indicou uma das sondagens do ICS-ISCTE, os portugueses
os quererem tanto que embora tão avessos a impostos se disseram disponíveis a
pagar mais para os melhorar, essa vontade não influenciou nem o governo
cessante nem os programas eleitorais, todos antes preferindo prometer baixas de
impostos ou melhorias de serviços sem assumir que eles têm custos que implicam
contrapartidas em receita. Às vezes, os números mostram o que a retórica
consegue esconder. A estatística diz que, por exemplo na saúde, em 2007
gastávamos 7% do PIB, 6,5% em 2012, e, em 2017, apenas 6%. Do mesmo modo na
educação, descemos de 6,2% em 2007 para 5,8% em 2012 e 5% em 2017 ( dados do
Eurostat ). Não acompanhámos em crescimento da despesa sequer o crescimento do
PIB, apesar de serem nas palavras apostas estratégicas de todos, da direita à
esquerda.
Mas o ponto essencial do sucesso da legislatura anterior foi a
capacidade de governar com um olho nos mercados e outro no povo. Uma capacidade
que a generalidade dos governos europeus não teve, ajudando a crescer o
populismo. Só o PS poderia protagonizar um governo assim, porque o PSD
escolheria sempre os mercados financeiros e o conservadorismo fiscal. Mas para
protagonizar sozinho um governo com esse equilíbrio, o PS teria que dar aos
eleitores a garantia de que o conseguiria só com os seus equilíbrios internos.
O que poderia ter feito, mas não fez, com um programa eleitoral quantificado e
socialmente ambicioso, sem pôr em causa a credibilidade adquirida. Não o
fazendo, arrisca-se a gerar uma situação paradoxal para os seus interesses, de
protagonizar o bloco de poder mais à esquerda de sempre, e acabar, nesse bloco,
com o estatuto de partido à direita do seu próprio eleitorado.
No início da campanha eleitoral, PCP e BE tentam convencer o povo de
esquerda que sem eles o olho esquerdo do PS se fecha.
Para conseguir maioria absoluta o PS tem que, ou confiar que a
espiral de descida do PSD lhe resolve o problema, deixando-lhe todos os
tabuleiros em aberto ou escolher se quer dar garantias à direita ou à esquerda,
para conter uma ou a outra. Até agora tem procurado evitar esse debate,
prometendo apenas mais e melhor do mesmo.
A surpresa dos últimos dias da pré-campanha eleitoral foi a retoma da
capacidade de circunscrever danos por parte de Rui Rio. Se continuar assim, o
resultado do PSD será mau, mas não o surpreendente desastre anunciado, e o PS
ou mostra que consegue governar sozinho com um olho nos mercados e outro no
povo ou acabará por dar razão àqueles que dizem que dar-lhe demasiada força é
construir um poder com uma perna esquerda demasiado fraca e perder nessa
passada a última hipótese de ter uma maioria absoluta.
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